sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Lula, o menino sem rosto ou Lula, o menino das muitas faces

Por Lorenzo Dumas

Lula: o menino sem rosto!
Texto sobre luz e sombra, sobre o bem e o mal, sobre o PT e o tempo que urge em nascer:

Aquela não foi uma trovoada comum. A Segunda Guerra Mundial acabara de chegar ao seu término, o tribunal de Nuremberg começava a se desenhar, Getúlio Vargas estava prestes a ser deposto pelo general Góes Monteiro, a criação do estado de Israel dividia a Palestina, e o mundo, essa ignóbil abstração que o ser humano transformou em purgatório, entrava em um longo período onde a Guerra Fria ditaria as regras da geopolítica no século XX.

Hoje, eu sei que aquela trovoada, que se perdeu nas veredas do ano de 1945, não dizia respeito à nenhuma dessas circunstâncias. Não dizia respeito nem ao roceiro Henry Truman que meses antes havia semeando duas bombas atômicas no coração da humanidade, nem ao fatídico destino de Josef Stalin, homem mais temido da época, que oito anos mais tarde sofreria um derrame e perderia a vida mergulhado em sua urina.

Tampouco foram os nascimentos de Neil Young e Eric Clapton, que também se deram naquele ano, a razão do sobrenatural que me acometera. Foi no interior de Pernambuco, no pequeno distrito de Caetés, que no dia 27 de outubro de 1945 nascia a causa do retumbante presságio que ecoou em minha consciência juvenil e que ainda hoje, no alto de meus 74 anos, me causa desagradáveis calafrios: o nascimento de Luís Inácio Lula da Silva.

Naquela noite fria de primavera, minha mãe me pôs para dormir e como eu relutava em cair no sono por estar certo de que havia um terrível desígnio que acabara de ser marcado em meu destino, pedi para que ela, mulher religiosa cuja certeza acerca da eternidade me concedia a ilusão de ser senhor de mim por ínfimos instantes, me contasse uma história que pudesse acalmar o meu temor desmedido. ‘’Sois um homem, imbecil! Comporte-se como tal!’’, me recordo de ter pensado instintivamente ao ver minha mãe cedendo ao meu capricho.

Mas como Marcel Proust em sua infância, eu também abdicava da minha dignidade, do meu amor-próprio de garoto, apenas para sentir o calor materno mais próximo: ‘’De tempos em tempos – disse-me ela, certa vez – assim como o céu, as trevas abrem as suas cancelas e enviam emissários para a terra. A luta entre o bem e o mal é a luta entre o esclarecimento e a ignorância; entre a generosidade e a ignomínia. É a luta que foi dos teus ancestrais e que será dos teus descendentes. É luta da tua vida que terás que desvendar. E a vida, meu filho, nada mais é do que luz e sombra. Para ser sábio é preciso ser bom e o mal, embora abominável, muitas vezes nos guia com eficiência para o caminho do bem. Só assim aprenderás a interpretar os sinais da vida. Isso que sentiste hoje foi um sinal. No final, Deus precisa mais da gente do que a gente precisa de Deus’’.

Por muito tempo essas palavras tomaram conta dos meus pensamentos. Embora eu não alcançasse a totalidade dos dizeres de minha mãe, havia algo em meu inconsciente que tocava nas profundezas daquela sabedoria sem que a minha razão tomasse conhecimento. O passar dos anos me trouxe maturidade. Me tornei menos impulsivo e mais observador; menos medroso e mais paciente. Havia quase esquecido o furor psicológico que aquela noite de 1945 tinha causado em meu íntimo, até que, em setembro de 1952, uma viagem a trabalho de meu pai, com destino a Governador Valadares, me trouxe aquele sentimento arrebatador de volta. Eu me encontrava no carro, observando a paisagem à medida que atravessávamos as precárias estradas mineiras, quando um pau de arara tomado pela miséria surgiu no horizonte e se aproximou em nossa direção.

O menino Lula surge, enfim: sem rosto

Me lembro dos mais de 30 retirantes espremidos entre a sobrevivência e a indignidade. Minha mãe fez o sinal da cruz; meu pai fez que não viu. Como íamos em direções diferentes, pude vê-los passando rente à minha janela. A miséria não mais invisível aos meus olhos me envergonhava. Nada desperta mais o pudor de uma criança do que a sorte miserável de um semelhante. E em uma miscelânea de sentimentos contraditórios que afloraram em minha alma, o olhar sinistro de um garoto que vestia trapos veio de encontro ao meu. Eu poderia jurar que aqueles olhos negros, vidrados, se avermelharam a tal ponto que eu já não poderia mais distinguir ao certo a realidade da fantasia. Ele sorriu em resposta à minha exasperação. Já não era então apenas um garoto. Era um homem sem rosto, sem feições, capaz de emprestar a si qualquer semblante humano. Em verdade, sequer era um homem: era o retrocesso histórico, um buraco negro do universo brasileiro que devoraria toda uma geração com a violência dos sem caráter. Anos mais tarde, eu viria a saber que aquele menino misterioso era Luís Inácio Lula da Silva. Ele havia saído do interior de Pernambuco num pau de arara com sua mãe e irmãos para se dirigir à São Paulo, onde o seu pai morava, e assim dar início à sua escalada ao poder. Jamais me esquecerei deste dia.

Chegar aos 74 anos no Brasil não é fácil, mas uma das benesses de se estar vivo há tanto tempo é que você deixa de criar expectativas com relação à humanidade e encara o pior não como um tormento, mas como uma necessidade histórica. A história é o fluxo inconsciente da humanidade e os mecanismos pelos quais os seus acontecimentos se dão estão fora da possibilidade de compreensão racional, ainda que o seu estudo, com efeito, permita uma compreensão mais ampla da vida. E embora sejam os acadêmicos aqueles que escrevem a história, são as inúmeras e insondáveis ocasiões e coincidências, jamais registradas, entre homens e circunstâncias, o que a define de fato. A história é o rastro do destino e nós, recitou Shakespeare, ''somos os bobos do tempo''.

Observando a chegada de Lula e sua corte ao poder, uma verdadeira comitiva do mal que sequestrou o país, percebo que minha mãe tinha razão quando disse que o mal muitas vezes nos guia com eficiência para o caminho do bem. É verdade que o país está aparelhado até a raiz pelo governo, com a miséria estrategicamente transformada em votos, e com comunistas pretendendo ser paladinos do capitalismo, mas é também verdade que nunca se viu uma época em que o brasileiro estivesse tão descontente com o arranjo das coisas. Logo o brasileiro, este ser historicamente atávico, conformado e acima de tudo desinformado, hoje não se conforma com as notícias que lê diariamente.

Se hoje a grei de Lula está no poder é para que nós entendamos que o PT é uma quadrilha que surrupia dinheiro, verdades, valores e direitos, dividindo a sociedade brasileira em guetos sociais para multiplicar o seu poder que é financiado pela farsa do assistencialismo. Se Dilma foi reeleita é porque assim deve ser para que a ilusão petista se desfaça por completo. Assim deve ser para que os cidadãos brasileiros comecem a perceber que os socialistas são essencialmente ladrões do bem alheio, que os conselhos populares são uma fraude populista, que as empresas estatais são colmeias de zangões estéreis que se lambuzam com o mel público e que assistencialismo é o voto de cabresto do século XXI. Afinal, prezado leitor que ainda me acompanha, o que poderia fazer o senador Aécio Neves em quatro anos senão pagar por uma dívida que ele não contraiu e, no fim, ser culpado por um crime que não cometeu? Mais quatro anos de Dilma Rousseff é tudo o que o Brasil precisa para que o PT se destrua por completo. Infelizmente, o país será igualmente arruinado, mas, como a fênix lendária, renascerá das cinzas e baterá as asas com a força de quem aprendeu com a sua própria história.

O Brasil está prestes a acordar de um pesadelo corrupto, que se prolonga desde a independência, e que atingiu o seu cume populista na última década e é graças ao menino sem rosto que cruzou o meu caminho há mais de 60 anos que o país vê uma possibilidade de se reencontrar consigo mesmo de uma vez por todas. É graças a ele que novamente sinto uma exasperação em minha alma, como as que me acometeram na juventude, onde um palpite instintivo me diz que não tardará para que o PT seja enviado para as sombras, junto do homem sem rosto, ao lado do seu séquito de farsantes, dando lugar à luz de um novo tempo que urge em nascer''.

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